A ordem psiquiátrica, de Robert Castel, é um passo a mais, e decisivo, na análise das condições concretas em que o fenômeno da loucura é apropriado como objeto de real saber e poder legítimo por instituições socialmente reconhecidas. Reconhecidas precisamente pelo domínio que exercem sobre a insanidade e seus efeitos nos indivíduos e coletividades.
Em seu livro anterior, O psicanalismo (Graal, 1978), Castel traça a evolução dos sistemas psiquiátricos, nas suas relações com o saber médico e com os aparelhos repressivos, que resulta num processo de “psicologização” da sociedade. Mostra que o dispositivo institucional da psicanálise ― na relação entre o analista e o paciente, fonte de seu saber e de seu poder de “cura” ― é cúmplice desse processo.
Enfoque inovador, pois críticos e defensores da psicanálise contentavam-se em focalizar conceitos isolados. A questão é, assim, deslocada de uma sociologia das instituições e do dispositivo teórico-prático que reproduz um modo de conhecimento e de poder.
O que Castel agora retrata é a institucionalização de uma estratégia que toma por objeto as classes subordinadas. A tarefa da burguesia em ascensão incluía limpar o terreno dos imprestáveis e disciplinar os demais para o trabalho.
Desenvolve magistralmente o projeto iniciado em Eu, Pierre Rivière… (publicado nesta biblioteca), de desvendar de que maneira um domínio das condutas sociais torna se patológico e subordinado à medicina, não por obra e graça de um progresso do saber, mas pela inserção dos psiquiatras nas engrenagens do poder.
Não é de se estranhar que a medicalização da desordem mental, dentro de um paradigma científico e legislativo, viesse a confundir, numa grande mixórdia, metáforas, conceitos e coisas, lutando em todas as frentes da noção de lei e de ordem. A psiquiatria nascente acaba não sabendo se deriva sua ação sobre a doença mental das normas científicas em que pretensa-mente se baseia, do contraste entre essa ação disciplinar e o disparate da loucura, ou da legislação, que legitima sua autoridade sobre a doença mental e, particularmente, sobre os doentes mentais.
História do saber psiquiátrico, a obra de Robert Castel é também uma micro-física da ordem social e das estratégias que mantêm a desordem sob controle, oferecendo um notável contraponto para a extraordinária reconstituição da história da psiquiatria no Brasil, publicada em Danação da Norma, por Roberto Machado e seus colaboradores, nesta mesma biblioteca.
J. A. Guilhon Albuquerque